Da senzala, toda noite, ecoava grito de dor. A ferida na pele era pequena em vista do coração dilacerado: famílias desfeitas, línguas renegadas, vidas vendidas, liberdade anulada. Abolidos de sua história, negros e negras choravam a dor do abuso. Ainda assim, tinha jongo, tinha capoeira, tinha ijexá. Mesmo com um dos pés preso às correntes, tinha canto que ecoava em meio ao grito de dor.
Não podiam cantar para Iemanjá, cantavam para Nossa Senhora. Falavam línguas diferentes, mas palmas eram universais. Davam ritmo à sabedoria, os pretos e pretas mais velhos: quebravam demanda, traziam esperança, ensinavam paciência. Mulheres negras eram a maior mercadoria dos senhores brancos: choravam a dor da violação, noite após noite em que adentravam quartos da casa grande.
Se voltavam para a senzala, algumas morriam de desgosto, então se punham a cantar, carregando a esperança de dias melhores. Tinha dia que vinha na mente a imagem de quem, além-mar, era jogado, com peso de pedras nos pés. Lembravam também das famílias, algumas eram boas rainhas que agora, sem coroa, só restava ser réu de um sistema que durou quatrocentos anos.
Nenhum deles viveu por todo o sistema, foram muitos anos. Aliás, não viviam o que o feitor vivia. Alguns, da senzala, cantavam: pediam caridade aos seus deuses. Outros, fugidos da senzala, lutavam armados contra a dor de seus irmãos. Havia ainda os que, de ganho em ganho, atingiam espaços de pequeno poder e, de lá, arquitetavam o fim da escravatura.
Cada um à sua maneira, na luta por uma nova abolição… A abolição da escravidão! Choravam, gritavam, cantavam. Ecoavam suas dores, suas alegrias, suas histórias. Dia após dia, enquanto não venciam, sentiam o corroer da pele ao bater da chibata. Outros, sentiam a invasão do corpo dada pelo senhor branco. Tinha ainda quem tentava fugir e, descoberto, tinha a vida interrompida.
Foram quatrocentos anos de tentativas, nos mais diferentes lugares da terra do pau-brasil que, desde quando “descoberta”, se tornava a terra das dores. Um dia, um canto ecoou. Agora, de alegria. Era uma tal princesa assinando uma lei. O nome dela não importa agora, porque o nome dos negros e negras não são sabidos. Legitimada por uma coroa, em minutos, a poderosa mulher dava fim à escravatura.
Fácil, assim. A vida dos negros sempre secundária, até nas conquistas. Há quase sempre um branco ou uma branca por trás das vitórias. A cor que tatua a pele permanece a legitimar a história. Parecia ser o fim ao sistema abusivo. Não foi. Libertos, mas não amparados. Foram viver marginalizados, os que sobreviviam à fome e à miséria. Os que morriam, iam sem dignidade, assim como lhes foi em vida.
Cento e vinte nove anos depois da tal abolição, chibata e chicote foram anulados. Deram lugar às balas que fuzilam a população negra num tamanho genocídio. Agora, os senhores são outros e os feitores também. A dor permanece a mesma e ainda há canto de esperança, dia após dia, em todo espaço marginalizado. Há ainda a busca pela fé, como amparo e legitimação, já que a cor da pele não respalda.
Os quatrocentos anos tiveram fim graças aos negros e negras que foram e aos negros e negras que ficaram. Graças a quem cantou com fé e foi ouvido. Graças a quem apanhou e continuou lutando. Graças a quem se rebelou e permaneceu guerreando. Graças a quem foi violada e, mesmo chorando, fortaleceu quem também sofreu violação. Uma princesa apenas assinou. De todo o resto, foram mortes, estupros, feridas abertas e muito abandono. Não há o que comemorar.
Foram quatrocentos anos que não deviam ter sido sequer um. O fim de um sistema que não deveria ter existido não pode ser celebrado. Menos ainda quando é lembrada uma mulher branca, legitimada por sua coroa e pelo papel que assinou, enquanto tantas Dandaras sofriam. Além do mais, o reflexo do sistema continua matando um jovem negro a cada vinte e três minutos no Brasil. Feliz 13 de maio para quem?
Fonte: Portal Todos Negros do Mundo